Compreender o universo do samba e das escolas de samba tem sido um grande desafio. São muitas nuances, ramificações, “poréns”, sem contar o debate sobre gosto. O ponto positivo nisso é que o debate está posto o tempo inteiro, sempre sendo pensado e repensado. Antes de tudo isso, é importante destacar: como chegamos até aqui e quais caminhos tomamos? Como a música de pessoas marginalizadas ganhou tanta força, sabendo das inúmeras dificuldades de representação, sociabilidade de modo geral e agenciamento?
Dos muitos pontos de partida que podemos ter ao tratar de música, negritude e do samba, penso em um Rio de Janeiro não tão distante, há uns 100 – 120 anos atrás, com tantas rachaduras políticas das elites governantes e, ao mesmo tempo, a negritude ocupando os morros, subúrbios e cortiços da cidade. Apesar da ausência de direitos na Primeira República, estávamos ali, presentes nas ruas, ocupando a Pequena África, fazendo os batuques, criando as primeiras movimentações institucionalizadas que poucos anos depois se tornariam escolas de samba. De Tia Ciata a Mano Elói e Ismael Silva. Essas figuras não se conformaram e foram importantes negociadores para essa institucionalização das nossas ações.
O samba, e tratando dos sambas-enredos, se comportam como uma série de vozes que se agenciaram através da musicalidade, ou seja, o samba-enredo é a forma de comunicação das comunidades e seus artistas. É impressionante como os desfiles tratam ano após ano dos interesses e conhecimentos das comunidades e da própria negritude de acordo com a época. Se separarmos os sambas de tempo em tempo, temos as literaturas de cada época retratadas nas canções, artistas reverenciados, histórias contadas.
De “O Caçador de Esmeraldas” até “Um defeito de cor”, o agenciamento negro no samba canta e retrata o entendimento que havia em determinado período, de uma visão tradicional, às vezes patriótica e com apagamentos e, hoje, com mais conhecimento de assuntos próprios da negritude, suas visões e saberes transnacionais. Os sambas, seus compositores e a arte de compor são formas essenciais de propor o argumento que o sambista tem, capazes de balizar a opinião pública, criticar, debochar ou inventar seu próprio estilo, homenageando e se colocando como homenageado. Mais do que cantar um samba, o que fazemos em casa, nas quadras e na Sapucaí é falar o que a gente pensa.